Relatos de parto da Juliana Boczko - O ponto de vista de um pai

Por Michel Boczko, 25.09.2014


Pois bem.
Somos uma típica família de classe média paulistana, ela Médica Veterinária e eu Engenheiro, executivo. Dois filhos, Catarina e Guilherme (hoje com 4 anos e 6 meses respectivamente). Vou contar de uma só vez a história desses meus dois partos porque estão muito interligados, vocês poderão constatar isso. Além disso não consigo evitar chama-los de Projetos, 1 e 2, porque acima de tudo, são provas do benefício do planejamento.
Não somos, exceto por uma leve preferência por comida orgânica, um casal "alternativo", aliás somos até bem caretas. Não fazemos yoga nem temos tatuagens, não sabemos tocar nenhum instrumento musical, não somos vegetarianos e nem adeptos de homeopatia. Até termos nossos filhos nossa rotina era carreira, carreira, carreira, uma pausa para a gastronomia e depois carreira, carreira e carreira. Hoje, depois desses dois projetos, parquinhos e escola ocupam também um espaço importante.


Projeto 1
Parto Natural Hospitalar da Catarina, setembro de 2010.

Quando soube que eu estava grávido (usei a primeira pessoa para reforçar meu protagonismo) não tínhamos qualquer meta romântica ou sonho para o nascimento do bebê, somente expectativas. Assim como a maioria das mães queríamos um parto normal, porque é mais seguro, porque é mais saudável. Porém eu tinha uma informação que fez toda a diferença: no Brasil o índice de cirurgias cesarianas é muito maior que em países da Europa, mais que 50% dos nascimentos. Não sei quando soube disso, talvez no colégio lendo almanaques e estatísticas de países. Não sabia da existência do parto natural, domiciliar e sequer sabia o que é uma doula. Parteira para mim era quase uma benzedeira (que também não sei o que é).
Nunca conversamos profundamente sobre isto pois eu acreditava que o parto normal seria o final certo se as condições fisiológicas da gravidez fossem favoráveis e tivéssemos acesso à um bom hospital. Assim seguimos, minha esposa conversou com familiares e elegeu dentre as indicações a melhor ginecologista e obstetra conhecida e melhor ainda, atendia pelo nosso convênio (por sinal muito bom, com acesso aos melhores hospitais e serviços de saúde de São Paulo).
Ela foi nas consultas de pré natal, tudo ótimo, tamanho, peso, batimentos, pressão, dpp (data provável de parto), ultra som (nesses eu também fui), tudo como tinha que ser. O desejo do parto normal foi exposto nas consultas mas sem nenhum compromisso explícito. Lá para a semana 36 (de uma média de 40, para outros pais desavisados) eu também fui na consulta, pois afinal de contas queria conhecer a Dra. C. que iria cuidar da gente no dia P (dia do Parto).
A consulta foi legal, tudo ótimo, tamanho, peso, batimentos, pressão, dpp... depois sentamos, falamos de maternidades (já tínhamos visitado as top of mind) e perguntei despretensiosamente: "Que bom que está tudo bem, como devemos planejar o parto para não cair no lado negro da estatística de cesarianas?"
A resposta veio por partes, como se fosse preciso várias linhas de defesa da argumentação. Apesar de as palavras terem sido muito bem colocadas, talvez nem fossem essas, assim soaram para mim:
- "Parto não se planeja, o que tiver que ser será."
- "A Juliana é muito delicada, acho que ela não vai aguentar um parto normal."
- "Parto normal mesmo, também chamado de natural, é com uma doula, profissional que não faz parte da minha equipe."
Devo ter deixado claro meu desconforto com a resposta, mas mantivemos a cordialidade e nos despedimos. Dei me o tempo do elevador chegar à garagem e entrarmos no carro antes de emitir uma opinião à minha esposa. Falei com as exatas palavras: "Ela vai fazer uma cesariana em você." Meu tom não era de terror nem derrota mas de convicção.
Não pude aceitar aquilo. Onde estamos errando? Será que não estamos sendo convincentes dos nossos desejos? Será que entendi errado o almanaque da escola? Por quê o convênio médico permitiria uma cirurgia que não é necessária? Podemos mudar de médico estando tão próximos do nascimento?
Gastei algumas horas naquela noite navegando na internet. Explorei os temas doula, partos na Europa e cesarianas no Brasil. Foram referências suficientes para abrir um outro mundo para mim.
Daquele dia em diante eu soube que para nascer bem no Brasil é preciso vencer algumas batalhas...

1a. Batalha: Informação
Naquela semana tirei alguns dias de folga, ficamos procurando entender o contexto em que nossa situação se encaixava, quais eram as peças deste tabuleiro, os interesses envolvidos, o papel dos médicos, hospitais, planos e saúde. Os aspectos culturais e econômicos deste complexo sistema. A palavra doula era a referência mais forte que tínhamos e ao que nos apegávamos naquele momento, uma boia que flutuava em um oceano de informações. Encontramos um site que tinha uma lista de nomes de doulas, para mim uma lista de desconhecidas, sem nenhum elemento para escolher. Então escolhi um que me ocorreu. Queria um nome alemão, pois li que na Alemanha esta era uma profissão tradicional e respeitada. Eu tinha a expectativa de que uma pessoa que conhecesse os costumes de lá pudesse dar as respostas que buscávamos. Achei a Andrea Steiof, Doula alemã radicada em São Paulo e que pela facilidade de línguas é procurada por estrangeiros que tem seus filhos no Brasil. Liguei também para outras duas ou três doulas mas escolhemos marcar um encontro com a Andrea no Hospital São Luiz.
Achamos também alguns sites de clinicas obstétricas que expressavam especial atenção aos partos normais e humanizados, mas ainda eram apenas opções das "páginas amarelas", naquele momento podiam não passar de tentativas de comercialização de serviços sem qualquer diferencial real na filosofia ou ciência aplicada. Ainda assim gostei do site da Casa Moara.
No dia seguinte encontramos a Doula, a primeira impressão não poderia ter sido melhor, ela foi muito racional e objetiva, atenta à nossa insegurança em tomar decisões, explicou seu papel no processo. Tornou-se para sempre nosso porto seguro nas decisões. Também endossou nossa idéia de conhecer a equipe da Casa Moara. Posso dizer que ela influenciou nossa decisão sobre a equipe médica e não o contrário. Entendemos neste encontro de maneira definitiva que a Doula é a responsável por oferecer alternativas para o maior conforto físico e emocional da mãe e da família, tudo isso, nada mais do que isso.
Na semana seguinte nos consultamos com a Dra. Andrea Campos, obstetra na Casa Moara, outra ótima interação. Nosso maior receio era que ela não aceitasse nosso caso estando já no 8o mês de gravidez. Pelo contrário, logo percebemos que a mudança de médico na última hora era sua rotina pois as armadilhas do sistema vão ficando mais visíveis no final da gravidez. Falou do restante da equipe, da Márcia Koiffman (Obstetriz), que mais tarde me fez entender o papel e valor da parteira.
Iniciamos o acompanhamento semanal na Casa Moara. A nossa Doula veio em casa algumas vezes, fez massagens, deu uma aula de anatomia e fisiologia do parto e amamentação. Indicou muitos sites, músicas e livros, líamos bastante e avidamente, estavamos famintos de informação. Estava vencida a 1a batalha.
Fomos à uma reunião no Gama - Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (onde conhecemos a Ana Cristina Duarte, pessoa que admiro pelo seu pioneirismo, garra e obstinação pela causa do nascer bem no Brasil), e por fim montei nosso plano de parto. Eu fazia tudo de uma forma quase militar, estudava todos os aspectos e recursos que podiam ou não ser aplicados, dava sugestões e influenciava minha esposa. Pedia recomendações para a Doula e Médica. Propus até usarmos óxido nitroso (gás hilariante) durante o trabalho de parto, até que a Doula me disse que não existia isso no Brasil, só em alguns países nórdicos. Ri de mim mesmo, parecia um adolescente escolhendo acessórios para o carro novo. Virei um aficionado pelo tema. Cheguei a cogitar o parto domiciliar mas minha esposa achou ousado demais, eu mesmo confesso que não queria ir tão longe naquela nossa primeira viagem, mas ficou no ar para a próxima vez... Montei o cronograma e planos de contingência. Acredito que a Doula e a Médica devem, em sua intimidade, ter visto graça em tamanha dedicação minha com o planejamento.
Decidimos então por um Parto Natural Humanizado Hospitalar, se possível na banheira e sem anestesia, além de todos os detalhes operacionais.
Claro que na vida nada é perfeito...

2a. Batalha: Família
Como se não bastasse ter enxergado a armadilha e encontrado a o caminho seguro, eu ainda tinha que convencer a família e amigos de que fazíamos o correto, e mais do que isso, tive que lidar com a responsabilidade de discordar de uma multidão recomendando em favor da cesariana eletiva.
Os dias foram passando, tudo ótimo, só curtindo os chutes e expectativas normais do fim de gravidez, alguns alarmes falsos, contrações fora de hora e começaram questionamentos sobre marcar data, esperar demais, riscos à que estávamos expondo nosso bebê, casos e tragédias. Um terrorismo psicológico tão comum à que somos submetidos neste momento de fragilidade. Acho que minha esposa estava insegura, podia desabar a qualquer momento. Eu a mantinha de pé, fiz tudo que estava ao meu alcance para trazer aliados para meu lado, mostrei vídeos, mandei artigos, livros, levei a mãe da minha esposa a um encontro na Casa Moara na expectativa de que vendo e ouvindo outras grávidas e profissionais conscientes e engajadas, despertaria nela o mesmo encantamento que eu sentia por ter enxergado este caminho.
Esforço em vão, afinal de contas é muito mais fácil não assumir nenhuma responsabilidade, delegar ao médico as decisões (ou ao destino, se preferir), eximindo-se das consequências das ações e omissões. Este tema foi inclusive objeto de uma discussão exaltada em meu momento de catarse, onde eu decidi por fim abandonar os papéis de vítima (da armadilha) e pregador (do caminho), assumi para mim toda a responsabilidade, fosse um sucesso ou um fracasso, perante todos eu me tornei o único responsável pelo desfecho. Ou melhor, se fosse um sucesso, possivelmente seria visto apenas a mão providencial da "sorte". A minha esposa sempre me apoiou e buscava me confortar fazendo eu entender que era informação demais para eles, que tínhamos que seguir sozinhos. Minha família por tradição é mais aberta à novas experiências e ainda que discretamente nos deu seu apoio. Este foi para mim o maior desafio, discordar dos que acredito queriam nossa felicidade, sobre algo que é tão crítico e relevante como a saúde de sua esposa e filhos foi muito marcante, correr o risco de ser apontado como único responsável por uma tragédia familiar.
Uma dolorosa batalha, com perdas para ambos os lados.
Mas que me fortaleceu. Hoje em outros desafios da vida, quando bate a insegurança e dúvida, incorporo o pai empoderado que fui e me encho de confiança, desafiando, com racionalidade e determinação as forças de oposição. Sabendo que apesar de tudo queria dividir com eles esta minha alegria, mantive até o fim o plano de que a mãe de minha esposa estivesse presente na sala de parto no momento do nascimento. E assim foi.

3a. Batalha: Natureza
No dia P pela manhã a bolsa estourou, ficamos no quarto quietinhos, lendo mais e monitorando as contrações, nos comunicando com a Doula, a Médica e a Obstetriz. Ao anoitecer fomos a uma sessão de acupuntura recomendada pela Médica pois as contrações estavam irregulares. De lá fomos para a maternidade do Hospital São Luiz, desta vez era para valer. O trabalho de parto estava evoluindo, um dos eventos mais incríveis da natureza, a única das batalhas em que não há desonra em não vencer, um momento de riqueza e intensidade do puro comportamento animal.
Demos entrada numa quinta-feira por volta de 23h e naquela madrugada, às 3:33h a Catarina nasceu, sem anestesia, sem traumas, sem violência, sem humilhação. Do começo ao fim eu sabia tudo que se passava, estava tão confortável e seguro que fui capaz de cuidar também dos detalhes mais simples, que contribuíam para o desenrolar dos acontecimentos, música ambiente, aromaterapia, fotografias. Garantir que nada fugisse ao nosso Plano de Parto. Nossa filha nasceu na banheira, com toda a saúde e vitalidade que era de se esperar (apgar 10 /10), cortei o cordão umbilical, choros de emoção, mamou logo em seguida e ficou o mínimo de tempo longe de nós desde então. Dormia conosco no quarto e fizemos questão de trocar todas as fraldas, dar todos os banhos e aprender com as enfermeiras do hospital as técnicas e cuidados com o recém nascido. Fomos bons alunos.
Destaco ainda desta experiência:
- Minha esposa foi perfeita, manteve a calma, consciência e bom humor por todo o tempo, não temeu nem cogitou desistir, mantendo-se maravilhada e maravilhosa ao longo de todo o trabalho de parto.
- Esta foi a melhor experiência da minha vida, meu melhor projeto até então, planejado e executado com perfeição, atribuo este sucesso aos excelentes profissionais que nos assistiram e à fortuna que a natureza oferece à grande maioria das mulheres.
- Ter a oportunidade de oferecer aos filhos desde seu primeiro instante de angustia, o conforto e segurança que nós demos à Catarina durante seu nascimento nos dá uma responsabilidade adicional, algo como elevar a régua do "dar do bom e do melhor".
- Ver a mãe de minha esposa realizando de forma tão serena aquilo que possivelmente é um sonho de todas avós, testemunhar a filha guerreira dando luz à neta foi para mim mais uma missão cumprida, ainda que ela não tenha visto desta forma.
- Esta experiência nos deu oportunidades de aprender um pouco sobre a fisiologia e psicologia do nascimento e infância, por isso incorporamos ao nosso estilo de vida algumas boas práticas que nos foram apresentadas, tais como amamentação exclusiva, livre demanda, criação com apego, educação construtivista e alimentação saudável.


Projeto 2
Parto Natural Domiciliar do Guilherme, abril de 2014.

Quando soubemos de nossa 2a. gravidez só pensava em uma coisa: ter um parto ainda mais emocionante que o primeiro (um desafio pois o evento do nascimento da Catarina 3 anos atrás foi um grande sucesso), superar esta expectativa seria muito difícil. Rapidamente entendi que isso só seria possível se tivéssemos um parto domiciliar (como havíamos "combinado" na última vez) e se a Catarina participasse de forma saudável de todo o processo. Desejo que mais tarde dividi com a Andrea Steiof, nossa Doula oficial.
Apeguei me ao compromisso do parto domiciliar com minha esposa, não deixei que ela questionasse esta condição e aos poucos tornou-se para ela um tema bem resolvido.
Na época havia algumas repercussões relevantes na mídia sobre esta "nova" modalidade de parto. De um lado pessoas ilustres e iluminadas como Gisele Bündchen (que teve seus dois filhos no conforto e segurança do lar), explorando toda a naturalidade e feminilidade da questão. Por outro lado mártires como Caroline Lovell, ativista australiana pela causa do apoio à partos domiciliares que tragicamente faleceu em 2012 por complicações em seu próprio parto. O Renascimento do Parto, o filme...
Portanto a idéia em si provavelmente não seria novidade para aqueles com os quais a dividiríamos mas as opiniões médicas divergentes e a realidade de que não somos efetivamente personalidade da moda ou TV nem moramos na Holanda, Suécia ou Austrália traria naturalmente um sentimento de oposição ao nosso plano. Assim assumimos em princípio uma posição discreta sobre o tema.
Não vou defender aqui estatísticas e pontos de vista sobre riscos de partos domiciliares vs hospitalares. Análises de riscos tem um limite subjetivo que inviabiliza o debate de posições ideologicamente antagônicas. No entanto esclareço que sou uma pessoa racional e na minha avaliação, com as informações de que dispunha, as decisões que tomamos foram às de maior probabilidade e impacto na felicidade da minha família, no curto e longo prazos. Não teríamos feito se não fosse assim.
Minha esposa estava desde o início fazendo acompanhamento de pré natal com a Márcia Koiffman, Obstetriz da Casa Moara que já tinha assistido agente como parte da equipe no parto da Catarina. Ela com auxílio da Priscila Colacioppo seria a parteira responsável pela assistência no dia P.
Todos os exames estavam ótimos. Tínhamos boas perspectivas de poder completar o ciclo com um parto domiciliar já que a gravidez estava transcorrendo muito bem e o parto era de baixo risco. Compramos um kit de parto domiciliar e uma piscina inflável. Fizemos inclusive um test drive na piscina, que a Catarina adorou. A nossa Doula veio em casa, fizemos exercícios e conversas de costume. Tudo parecia muito mais fácil, sem desafios, talvez até desinteressante. Demoramos até entrar no clima de parto.
O fato de eu ter sido demitido um mês antes da dpp me ajudou a entrar no rítmo. Tinha 24h por dia para preparar tudo. Montei nosso Plano de Parto, bem mais objetivamente que no caso da Catarina mas igualmente meticuloso e completo. No nosso plano o único ponto incomum, além é claro do fato de que seria um parto domiciliar, era o cuidado em envolver a Catarina, que se possível assistisse e participasse nos momentos mais marcantes. Portanto nisso nos esforçamos.
E tinha a questão do cardápio também...

Envolvendo a Catarina
Quando falamos para Doula que esta era a meta dela, ela imediatamente entrou em contato com suas colegas (não só no Brasil, mas também no exterior) em busca de informações e experiências de como deveríamos faze-lo e quais o cuidados em caso de as coisas não correrem bem, tanto no parto como com a Catarina. Nossas dúvidas eram se é preciso ter alguém que cuide exclusivamente da Catarina e também como prepara-la psicologicamente para assistir ao evento, de forma que fosse positivamente marcante. Lemos bastante e concluímos que as crianças tem dispositivos naturais de proteção que se não estivessem confortáveis iriam se refugiar em seu quarto ou até mesmo dormir, além disso a melhor forma de prepara-la era mostrando vídeos, fotos, simulações com as bonecas, falando com ela sobre o que ocorreria e também ouvindo suas expectativas. Falávamos que a mamãe poderia fazer caretas e barulhos mas que não era nada de ruim. Nós também a levamos para as consultas de pré natal. Até hoje ela gosta de assistir à vídeos de nascimentos.
No momento do parto fomos recompensados por nosso esforço e dedicação, ela já dormia quando a bolsa estourou por volta de 23:30 min. Por volta de 4h da manhã minha esposa estava na banheira (piscina inflável) em nosso quarto quando acordei a Catarina, peguei-a no colo e a levei para sala. Falei alguns minutos com ela, contei que o Bill (apelido do Guilherme) estava chegando e que a mamãe estava no quarto com a Andrea, a Márcia e a Priscila, ela ia gostar que a Catarina fosse lá ver o nascimento. Entrei devagar no quarto, sempre com a Catarina no colo, ficamos olhando um pouco distantes. Nesta hora minha esposa já estava mais serena o que contribuiu para o bem estar da Catarina. Eu no ouvido da Catarina ia falando tudo que acontecia "agora a Márcia vai colocar um instrumento para ouvir os barulhinhos do Bill", "a água está bem quentinha para a mamãe e o Bill não ficarem com frio", "olha lá a mamãe fazendo força para ele sair, já esta quase chegando". Percebi que ela entrou no clima muito rapidamente, sem medo nem ansiedade. Estava esperando os próximos acontecimentos. Ela já tinha visto algo parecido antes.
Na última contração ela já queria se aproximar. Mesmo com todo o movimento não tirava os olhos da mamãe e inclusive fazia perguntinhas: "é agora papai?", "a mamãe está fazendo força?", depois que nasceu ficou olhando admirada para o irmãozinho recém nascido, parecia um bonequinho saído de seu armário de brinquedos. Se eu pudesse ler os pensamentos dela estaria escrito "a mamãe tinha razão, o Bill estava dentro da barriga dela". Foi gratificante ver que ela não se assustou, aos três anos e meio de idade, aceitou de forma natural o valioso momento e a realidade de que haveria mais alguém entre nós, vindo no meio da madrugada de dentro da mamãe. Mais tarde ajudou a vesti-lo e pesa-lo, fazia carinho e cobria-o enquanto mamava. Sei que estava também avaliando o impacto que aquilo traria na sua vida, teria que dividir a mamãe e o papai, mas acho que a experiência que ela teve foi relevante para que tivesse fatos reais e nítidos na memória, não apenas fragmentos do processo, e pudesse assim pensar sobre eles, como se encaixavam, como fluíram, poder contar na escola nos dias seguintes e assim sentir-se parte da historia, evitando portanto que se colocasse em situação de contemplação e exclusão. Foi também protagonista.
Depois de tudo ainda tivemos nosso momento artístico, com a placenta fizemos alguns carimbos de tinta vermelha (sangue), deitou-se com mamãe e o irmãozinho, dormiram o resto da manhã.

Gerenciando a Torcida
Novamente a torcida organizada se manifestou. Desta vez estávamos mais conformados com o fato de que não teríamos apoio efetivo portanto também não expúnhamos abertamente nossos planos. Minha esposa tentou por algum tempo esconder sua decisão de ter um parto domiciliar ou pelo menos esquivava-se de responder diretamente perguntas comprometedoras quando questionada por sua família. "Para quando está marcado?", "Que maternidade será?". Eu muito mais seguro e comprometido com a causa era franco e aberto ao debate. Alguns amigos ou familiares davam sinais discretos de sua discordância, outros tentavam parecer democráticos com um "eu discordo mas respeito sua decisão" mas não deu para deixar de notar a tentativa de se criar um certo clima de terror ouvindo novamente casos e tragédias, quando novamente ocorreram alguns alarmes falsos. A lição que tiro é que no Brasil o mundo conspira em favor das cesarianas, as exceções são motivos de comemoração. Nesta disputa desigual, a informação e convicção em seus desejos são seus maiores aliados.
Felizmente tínhamos um apoio distante, alguém que nos entendia (eu mesmo nem precisava, mas foi importante para minha esposa). Um casal de amigos nossos, brasileiros e residentes na Coréia do Sul, que inspirados na nossa aventura com a Catarina tornaram-se também admiradores do processo de nascer bem, dividiam muitas experiências conosco. Também tiveram seu bebê de parto humanizado em um país que privilegia cesarianas (cerca de 40% dos nascimentos). Com eles aprendemos que há uma continuidade nisso tudo, não basta nascer bem, é preciso alimentar bem, limpar bem, sujar bem, dizer não bem, dizer sim bem, há muito que se aprender na educação, geralmente tanto melhor quanto mais conseguimos simplificar a comunicação e voltar aos princípios básicos do relacionamento humano.

O Dia Seguinte
No dia seguinte, uma quinta-feira, nada poderia ter sido mais caseiro. A equipe ainda estavam em casa guardando os equipamentos e eu fui comprar pão quentinho. Fazia muito tempo que eu não comprava pão para o café da manhã. Tomamos um café da manhã caprichado que eu havia planejado: ovos, bacon, waffle, pão de queijo, suco de laranja, queijos, frutas e iogurte. Eu coloquei no nosso Plano de Parto até o cardápio das refeições. Se fosse de noite seria uma canja de galinha, no almoço uma lasanha com salada. Eu tinha tudo quase pronto.
Minha esposa ligou para a família e no facebook divulgou a notícia. Recebemos visitas em casa. Pouco se falou sobre o evento em si, mas era visível que todos estavam surpreendidos com a simplicidade da vida. Sem maternidade, sem festas, sem estacionamentos, sem equipe de filmagem, roupinha de saída de maternidade. Na ausência disso tudo ficou claro como isto não passa de um negócio.
A noite recebemos um pediatra, examinou, rotina, tudo ótimo, nos orientou quanto à vacinas, exames e vitamina K.
Encontrei uma vizinha do apartamento de baixo no elevador e contei a aventura, ela imediatamente disse que ouviu um chorinho "baixinho e bonitinho" na madrugada, achou mesmo que tinha nascido. Fiquei portanto feliz por ter dado a ela a oportunidade de acordar naquele dia frio e ensolarado de outono com os primeiros sons de uma nova vida.
Na semana seguinte fui ao cartório fazer o registro. Tinha a documentação oficial emitida pela equipe, mas sabia que poderiam questionar em qual maternidade nasceu, e uma resposta como "nenhuma, nasceu em casa" poderia facilmente burocratizar minha vida. Mas não, correu tudo bem e para minha alegria ainda tive uma agradável conversa no cartório com a atendente sobre como foi nascer em casa.
Claro que com o plano de saúde não foi tão fácil, estou até hoje tentando receber reembolso das despesas...


Considerações Finais

Epidemia de Cesarianas: Muito tem sido considerado como hipótese para o índice tão elevados de cesarianas no Brasil (a Organização Mundial da Saúde recomenda que não seja mais de 15% e alguns países como Holanda já esteve próximo de 10%). O tema é mesmo complexo e não tenho pretensão de trazer uma conclusão definitiva. Mas ouso deixar alguns elementos para reflexão.
1a reflexão: O ensino de medicina no Brasil enfatiza os aspectos clínicos do nascimento, procedimentos, riscos, assepsia, medicação, imobilização e controle absoluto. A verdade é que poucos médicos sabem agir diferente, e não tem porque se esforçar para aprender já que o tempo requerido e imprevisibilidade do processo de parto normal não contribuem para a produtividade e sucesso financeiro destes profissionais. Por isso sou defensor da valorização de obstetrizes (enfermeiras obstetras, parteiras contemporâneas) como profissionais qualificados para assistência aos partos de baixo risco. Médicos são recursos valiosos demais para serem usados em um processo onde saber esperar é um dos fatores de sucesso.
2a reflexão: A desinformação e cultura do Brasileiro também tem sua importância. Existem muitos mitos, geralmente propagados por médicos, que levam mulheres saudáveis mas desinformadas à temer o parto normal. Sexualidade, dor e saúde do bebê são campeões de bilheteria. A verdade é que como qualquer mamífero o corpo da mulher é resultado de milhões de anos de evolução com o objetivo único de reprodução, e o faz muito bem. Acho que a mídia e organizações influentes no meio obstétrico prestam um desserviço enquanto propagam uma cultura de terror no parto normal e não punem abusos cometidos por profissionais de saúde, a violência obstétrica. A mulher brasileira por sua vez, especialmente no sistema privado, deseja dos médico um tipo de atenção além do profissional, de exclusividade e personalização. Em modelos mais eficientes, o profissional de plantão pode ser um desconhecido, mas está preparado e autorizado para a assistência ao parto.
3a reflexão: Por outro lado, taxas de cesarianas vem crescendo em quase todos os países, Estados Unidos, Europa e mesmo na Holanda. Não tenho dúvida de que uma cesariana, trás facilidades e comodidades momentâneas para o casal moderno. Previsibilidade e pouco esforço são conveniências que só uma cesariana eletiva pode oferecer. Ainda assim, estou convencido de que um parto normal digno e respeitoso tem uma probabilidade muito grande de oferecer prazer e saúde à mãe, pai e bebê. Cesarianas salvam vidas, mas também tiram. Cabe um debate amplo entre nós como sociedade e não somente como família para definir o modelo de reprodução que queremos, mais humanizado ou mais mecanizado, cada um com suas implicações. Enquanto a discussão não toma a proporção que merece, a atitude individual de famílias e profissionais terá efeito na saúde física e mental das próximas geração. Como disse Ana Cristina Duarte, "cada um sabe o leão que quer matar".

Passo a Passo: Se ter um parto normal com dignidade é um desejo relevante seu, você não pode ser passiva (o). Precisa acreditar que no Brasil o caminho provável é o da cesariana no sistema privado, ou da violência e humilhação no sistema público. Qualquer coisa diferente disso é uma exceção, e é isso que você quer, ser uma exceção, lembre-se que em maternidades privadas mais de 80% dos nascimentos são por meio de cirurgias cesarianas, menos de 1 em cada 5 foi a exceção. Precisará lutar para estar entre essa minoria.
1o passo: leia, estude, pergunte, internet, obtenha muita informação, conheça a fisiologia do processo, saiba identificar as armadilhas do sistema, as leis e seus direitos, compare os riscos e desafios de cada opção.
2o passo: encontre profissionais obstetra / obstetriz / doula que estejam comprometidos com seus desejos e qualidade da sua experiência, a segurança sua e de seu bebê deve ser o ponto de partida e não o objetivo.
3o passo: cerque-se de pessoas que entendam e incentivam você, aceite que poucas foram exceções e por isso sentir-se-ão melhor se você também não for, é a natureza egoísta do ser humano.
4o passo: prepare-se física e emocionalmente, exercícios e massagens específicas são comprovadamente eficazes, como por exemplo no períneo e assoalho pélvico (sempre com recomendação técnica profissional), esteja pronta (o) para uma maratona de emoções mas gerencie suas expectativas para lidar bem com eventuais frustrações.
5o passo: planeje os detalhes, Plano de Parto. Se der tudo certo como será? Se der algo errado como será? Saiba quais serão suas opções a cada passo do processo, não deixe que a tensão do momento leve você a uma decisão imprudente, atenha-se ao plano.


Referências:
Michel Boczko, michel.boczko@gmail.com (11 9.9648.5501)
Juliana M. Didiano Boczko, judidiano@gmail.com
Andrea Steiof, andreasteiof@uol.com.br
Andrea Campos, andrea@casamoara.com.br
Márcia Koiffman, marcia@pimaluz.com.br
www.casamoara.com.br
www.maternidadeativa.com.br

2 comentários:

  1. Muito lindo seus relatos. Infelizmente no Brasil, somos amedrontadas a realizarmos cesarianas por n motivos, e nunca consideiramos a ipótese do médico estar querendo lucrar na hora + linda e + perfeita na vida de cada mulher, que deixamos que eles tomem as decisões que quiserem, e retirem o bebê da barriga. esse momento é único, e deve ser vivido intensamente não só pela parturiente, mas também por toda a família. Também sou a favor de um parto normal, e é assim que meu 1º filho vai nascer.
    http://superandoopreconseito.blogspot.com

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  2. Parabéns pelo relato cehio de detalhes. Podem ajudar quem, como eu, veio aqui pra saber mais sobre como é essa experiência do parto normal. Já vi em outros sites muito bons, como este, mas o seu ponto de vista e sua experiência são únicos.

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